34 – Pedaços de Mim  (Quando as Nuvens Dançam – Reflexões de Quarta-feira)

Três anos atrás, ao completar 50 anos, passei por uma de minhas muitas crises. O mundo emergia de uma pandemia que havia matado milhares de pessoas, eu havia recebido o diagnóstico de uma artrose severa e tinha que lidar com questões familiares muito graves. Senti que era o momento de começar um projeto, um romance de autoficção, uma investigação profunda da relação familiar, uma espécie de diário em que algumas memórias ganham vida. 

Não importa que eu não me lembre de tudo com precisão. Aceitei a necessidade, me rendi uma vez mais à escrita como caminho espiritual, um refúgio onde encontro amparo para simplesmente seguir vivendo. Escrever no escuro da alma é acender uma vela, alimentar a existência. É não desistir. Nesses escritos, não tento embelezar a vida, pelo contrário, exponho a crueza dos sentimentos obscuros, os pequenos grandes desesperos, as amarguras e frustrações, e a batalha diária para tentar garimpar o ouro de cada momento. 

Já me falaram que um expurgo emocional não é necessariamente algo que as pessoas queiram ler, ainda mais em um mundo onde a grande maioria quer ser instagramável, colocar filtro sobre tudo e fingir que a dor não existe. O movimento desse tipo de escrita é justamente o oposto dessa tendência generalizada à negação. Falo de escrita espiritual porque em meu caminho entendi que não é negando a dor que conseguimos superá-la, mas sim atravessando o centro dela, entrando no olho do furação, enfrentando a frustração inevitável e a amargura condenável, tudo que nos enoja em nós e nos outros, e travando a batalha mais antiga do mundo, a luta do amor contra a própria sombra, porque o maior inimigo somos sempre nós. 

Não sei se o publicarei um dia, mas como escrevi no trecho a seguir, naquele início de projeto, resta-me apenas continuar, como quem respira:

“E escrever, nem que seja às quinze meia-noite, nem que seja um reles parágrafo em míseros quinze minutinhos, porque o fôlego não dá para mais, porque os olhos estão fechando e amanhã de manhã cedo começa outra epopeia de migalhas… Como quando chegam os 50 anos e a gente vai se alimentando dos farelos de quase nada, dos dias que fogem entre os dedos. Ainda assim, tenho que me curvar diante delas. Das migalhas. Meu desejo profundo é aprender a reverenciar essas pequenas coisas do dia a dia, a quem mal ou bem dedico essas linhas. 

Sim, porque ser mãe e filha é cheio desses detalhes aparentemente insignificantes, que caem no esquecimento como se nunca tivessem existido. No entanto, é justamente a junção de todos esses retalhos que compõe o colorido e a beleza das relações mais importantes de nossas vidas. Como eu gostaria de garimpar esses pedacinhos de nada, esses tesouros do cotidiano que, quando inobservados, são simplesmente devorados pelas dobras das horas… 

São tantos detalhes na construção de nosso ser, que nos fazem escolher isso e não aquilo, ir para cá em vez de lá, e vamos passando por quase tudo com um sonambulismo crônico, sem perceber a vastidão contida em cada instante. Talvez seja esse o verdadeiro e único pecado original. Viver sem realmente viver o momento.”

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