17 – o que é que os baianos têm (Quando as Nuvens Dançam – Reflexões de Quarta-feira)

Hoje, depois de uma manhã corrida, digna de qualquer pessoa que mora em cidade grande, ainda que eu more em uma cidade pequena, cuidando de filho, administrando situações, resolvendo pepinos e me desdobrando em muitas, voltei para casa exausta antes mesmo da tarde começar. Felizmente, achei um lugar para sentar na balsa lotada com que atravessamos o rio que separa a parte da cidade onde a vida mais burocrática e prática acontece, com bancos, cartórios, prefeitura, clínicas e hospital, e a outra parte, o distrito onde eu moro, mais arborizado e, a meu ver, bem mais charmoso, que subsiste basicamente de comércio e turismo. 

Lembrei de abrir uma garrafa de água gasosa, um hábito herdado de minha família, um péssimo vício para uma ativista ambiental, acima de tudo pelo lixo plástico que gera, que eu tinha guardado na bolsa. Cada garrafa, por mais prazer que gere, principalmente no ar abafado do meio-dia, vem com uma dose extra de culpa. Não bastasse isso, nem pensei que, com o calor do sol a pico, era quase inevitável a água ser projetada em todas as direções assim que eu virasse a tampa, o que obviamente aconteceu. Foi um daqueles momentos embaraçosos em que a vida fica em suspenso e tudo pode acontecer. Por alguns segundos, fui projetada às inúmeras viagens de trem, metrô ou ônibus que fiz quando morava na Alemanha, nos Estados Unidos, na Espanha ou na França. Uma situação dessas poderia ter consequências dramáticas em outros lugares e até acabar em xingamentos ou gritos.

Receosa, olhei para um lado e para o outro, para entender o estrago. Tanto a mulher do meu lado esquerdo quanto o homem do lado direito estavam empapados, as gotinhas de água reluzindo e deslizando nas faces, assim como eu. Prendi minha respiração por alguns segundos, até que os velhinhos, que antes conversavam em pé à minha frente, encostados displicentemente numa coluna de aço, começaram a rir. Era um riso gostoso, abrangente, que esticava as diversas rugas da pele curtida de sol, enquanto uma mão aqui coçava displicentemente a cabeça debaixo do chapéu, outra ali apoiava a preguiça, os dedos dos pés dedilhando com simpatia, como se conversassem entre si enquanto brincavam com os chinelos. E, como muitas vezes acontece com o riso, ele acabou contagiando aqueles que estavam por perto, meus vizinhos de viagem, que sorriram também enquanto secavam o rosto ensopado. Após me desculpar, arrisquei um comentário:

_ Gente, me desculpem, foi mal. Imaginem se fosse refrigerante… Estaria tudo melado! – e eles riram ainda mais. 

_ E num é o quê? Nesse calorão a água até refresca, ainda mais geladinha assim! – concordou a moça corpulenta e quase feliz pelo banho inesperado.

Acabou sendo, de fato, um banho de água fria, no bom sentido, e de repente tudo estava mais leve e mais fresco. E eu pensei que é por esses e outros pequenos momentos que me apaixonei quando cheguei, trinta anos atrás, e ainda amo a Bahia. Não vou mentir que é fácil viver aqui. Não é. Algumas pessoas vêm passar férias e nutrem a ilusão de que estão em um paraíso, outras até mesmo se arriscam a vender tudo e vir morar aqui. Quando se deparam com as dificuldades da vida prática, a lentidão dos processos burocráticos, serviços públicos que deixam muito a desejar, se decepcionam e vão embora. Existem aquelas que acabam tendo o mesmo tipo de vida que tinham na metrópole, um cotidiano estressado e desmatado de sentido, com um quintal cimentado e uma graminha artificial só para dizer que têm um jardim, e passam a vida reclamando e maldizendo o dia que escolheram morar aqui. 

Mas há quem, apesar de tudo, continue reparando nos sorrisos gratuitos, na leveza com que muitos encaram a dureza, no brilho do sol ondulando nas águas, na brisa suavemente mágica que se ergue do nada, na beleza do que ainda resta das matas, dos caminhos de barro, das folhas no chão, na malemolência de quem sabe que não adianta se preocupar, já que daqui a pouco tudo pode ficar muito pior, e muitas vezes fica, então por que não relaxar? Estamos vivos ainda, daqui a pouco podemos não mais estar, dizem os filósofos anônimos do dia a dia, sem nada precisar dizer, simplesmente abraçando cada momento e não economizando na gentileza. Não sei como eles fazem para ser tão lindos, mas já avisei para o lado de lá que na próxima vida quero ser baiana. 

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