31 – O Privilégio da Escolha (Quando as Nuvens Dançam – Reflexões de Quarta-feira)
Em um documentário muito comovente chamado “A Escolha de Laura”, uma australiana de 88 anos que mora sozinha, é independente e tem ainda plena mobilidade, decide ir para a Suíça para terminar a própria vida. Como a filha e a neta são cineastas, ela pede que as duas façam um filme sobre o processo de decisão até a consumação do ato final, como uma forma de ativismo, de modo a contribuir para que um dia na Austrália haja uma lei que garanta o direito à morte voluntária e assistida, o que de fato parece que aconteceu dois anos após a sua morte. Depois do filme, fiquei sabendo que no Brasil já há uma associação que promove e luta pelo que eles chamam de um direito humano fundamental, de ter acesso a uma morte digna.
Lembrei de um livro que li anos atrás a respeito de uma escritora que passava três meses com os aborígenes na Austrália. Segundo ela, naquela tribo, quando sentiam que o momento de partir havia chegado, os mais velhos se afastavam dos outros e se entregavam ao deserto. Com animais, presenciei algo parecido, é como se cachorros ou gatos procurassem um "ninho" para morrer e renascer do outra forma, exatamente como fazem para parir, buscando instintivamente a solitude e o abraço da terra para seus últimos momentos.
Durante o filme, eu me perguntei se teria sido diferente se Laura morasse com a família ou com amigos, pois em certo momento ela disse que talvez não tivesse tamanha pressa em partir caso houvesse essa opção na Austrália. Uma das certezas dela era que não queria arriscar uma das muitas possibilidades de morte terrível que a aguardavam, muito menos perder a independência e morar em um asilo, apontando para a triste realidade de grande parte das pessoas idosas hoje em dia, praticamente abandonadas por seus parentes e pessoas próximas, que não têm nem o tempo nem os meios econômicos de cuidar delas, muito menos a satisfação e a disponibilidade de acompanhar o fim de suas vidas.
Não é por acaso que a Suíça, um dos países mais ricos do mundo, é um dos primeiros a ter uma lei dessas. Ninguém quer sofrer desmesuradamente, não há mérito algum em viver sofrendo. Por mais que a vida tenha sua parcela natural e inevitável de sofrimento, sofrer demais não faz sentido quando pode ser evitado. Da mesma forma, evitar outros tipos de sofrimento a qualquer custo, como é o caso da prorrogação exagerada da vida, também não deixa de ser uma estupidez. Afinal, o que é viver? Quando já não vale a pena viver? É claro que ninguém pode responder a essas perguntas por outra pessoa, por mais terrível que seja ver alguém que amamos se dissolvendo em dores físicas e psicológicas. Mas é inevitável e totalmente razoável parar para repensar e questionar a nossa existência.
Há momentos em que viver fica difícil. Só que, às vezes, eles não passam, só pioram cada vez mais, levando algumas pessoas a considerar partir antes de serem consumidas pela dor. O tabu é grande e não contribui com uma conversa sincera e aberta, um estigma que tenta em vão controlar e julgar uma decisão que é irremediavelmente nossa, pelo simples fato de estarmos vivos e termos consciência, uma opção independente das leis humanas ou religiosas, de querer ou não continuar a viver, especialmente em situações de sofrimento intenso e irreversível. Obviamente, se estou aqui escrevendo, quer dizer que hoje tenho ainda amor para dar, vida para compartilhar, mas espero sinceramente que, quando for a minha hora, eu possa ter consciência de que ela chegou e, caso necessário, o privilégio de uma escolha respaldada pela comunidade e pela lei.