
Estou numa fila, esperando o banco abrir. Ultimamente, ando assim, de fila em fila, burocracia em burocracia, espera em espera, trabalho em trabalho, uma incumbência atrás da outra, e um garimpo incessante pelas pepitas de tempo que me permitam sentar e escrever, meu livro e essas pequenas oferendas semanais. Na corrida pela sobrevivência, que nos esmaga e adoece, por detrás do mundo incessantemente ativo e alienante, tento muitas vezes em vão achar o elo que dá sentido: a perspectiva do oceano. De resto, respiro fundo e me preparo para a idiotice inescapável. Como sempre é com o que nos surpreende, sequer imagino que daqui a pouquinho nada mais será igual a antes. Até que…
Chegam dois conhecidos queridos, que conheço há muitos anos, mas não vejo há tempos, daqueles que a gente quase sempre vê por acaso e se alegra quando acontece. É uma oportunidade de pausar a loucura, conversar um pouco, rever os acontecimentos recentes, colocar as novidades em dia. Nunca os encontrei juntos e aqui estamos. Em uma fila de banco, numa manhã qualquer. Como o nome dos dois começa com P, eu os chamarei aqui de senhor e senhora P, mesmo embora não sejam parentes. Nós nos cumprimentamos, fazemos graça sobre esses encontros que não aconteceriam se não tivéssemos essas chatices para resolver.
_Como têm andado? Faz tanto tempo que não nos vemos!
A senhora P. aponta para uma grande cicatriz no peito, conta sobre
uma operação que teve que fazer às pressas:
_Foi como se um caminhão tivesse passado por cima de mim. Um verdadeiro renascimento. Ainda estou me recuperando. Vou ter que tomar vários remédios pelo resto da vida.
_Até que está bem para quem quase morreu, eu comento, bem humorada. E penso: nada como as desgraças, próprias e alheias, para nos lembrarmos que o horror de cada dia não é tão horrível assim.
Sorrimos todos, do alto de nossa humanidade compartilhada. Sem precisar dizer nada, o momento já diz tudo. Mais cedo ou mais tarde, a vida te engole. Nós três nos olhamos com simpatia. Cada um com suas cicatrizes dos combates e abalos da caminhada.
_Pois a mim os médicos já desenganaram. – engata o senhor P., despejando a lava sobre nós, tornando a coisa toda ainda mais surreal, como se hoje a própria morte tivesse resolvido sair do caixão e pedir a palavra._Estou com nove tumores no pulmão. Não há mais nada a fazer.
Eles me deram no máximo um ano de vida. Vou para o Chile me despedir de minha família e depois volto para acabar aqui.
Um silêncio pesaroso se faz diante da confissão inesperada. Nada
mudou, mas tudo mudou, em um segundo.
_Estou bem, ele prossegue. Ainda bem que o SUS ofereceu uma equipe para cuidados paliativos quando for necessário. Enviarão enfermeira, fisioterapeuta, psicólogo para a minha casa. Não tenho medo da morte, só de como morrerei. Sei que pode ser terrível.
Sem nem mesmo pensar, eu o abraço, provavelmente o abraço mais longo que já trocamos. Conversamos mais um pouco, com leveza e carinho. Não há muito o que dizer diante da tragédia inevitável. Ele repete algumas vezes que não tem medo da morte, mas da forma como morrerá, como para lembrar a si mesmo que, quando o momento chegar,-seu desejo é de partir nos braços da Morfina. Trocamos númeres de telefone e nos despedimos.
Nossa pequena troca me acompanha pelo resto do dia e da semana. Mesmo sem um prognóstico médico, um acidente ou outro acontecimento fortuito pode levar qualquer um de nós a qualquer momento. Ainda assim, quem recebe um aviso direto da finitude acaba por ter uma intimidade maior com ela, está mais consciente de sua presença. Desde então, meu conhecido e eu trocamos pequenas mensagens diárias, enviamos stickers, ele me conta um pouco de seu dia a dia. Naquela fila do banco, ele rasgou o plano de fundo da rotina, quebrou as paredes da normalidade, jogou um raio de vida no instante, nos trouxe de volta para o presente, nos lançou na realidade mais elevada. Viver é urgente. Hoje, dedico a ele esta reflexão.