37) Lua Distópica (Quando as Nuvens Dançam – Reflexões de Quarta-Feira)
Após quase seis meses de retiro pandêmico, deixando a casa no máximo para fazer umas comprinhas, saí hoje pela primeira vez para ir ao médico. Fui “armada” de máscara e um livro eletrônico. Costumo levar um livro em minha bolsa, pois sempre há filas que aparecem de repente, como se estivessem esperando para nos fazer esperar. Nada melhor do que aproveitar para ler. Dessa vez, no entanto, tive a estranha impressão que o livro estava me ajudando a não ter que olhar muito ao meu redor. Na balsa que leva ao outro lado do rio, fiquei dividida, sem saber o que fazer. Antigamente, adorava aquela travessia, aproveitava para admirar a maravilha de lugar onde moro. Desta vez, ao olhar para fora da janela do carro, entre a paisagem e mim havia os outros. Não podia ignorá-los.
Não que antes eu não os visse. Sempre amei observar estranhos. Mas dessa vez eu realmente não queria vê-los. Algo me perturbava. Logo, notei a placa que dizia “proibido tirar a máscara”, ou algo assim. Meus olhos se voltaram rapidamente para aqueles que estavam sentados por perto e, enquanto varriam os rostos, percebi o som abafado de minha própria respiração voltando quente para mim, dentro da máscara, enquanto o suor escorria por minhas têmporas. E não pude evitar o pensamento que eles também estavam assim, como eu, respirando o próprio ar. As pessoas mascaradas, ali sentadas, lado a lado, mudas, vendo passar o tempo, pareciam ter uma expressão turva e distante, ou talvez era eu que as estava percebendo assim. Era como se aquela cena fosse um símbolo do que o que mundo está se tornando. Paisagens belíssimas, de tirar o fôlego, impossíveis de respirar. Uma lenta travessia por um rio cada vez mais obscuro, que nos deixa cada vez mais sem ar.
Quando começamos a achar normal que há muros e grades ao redor das casas, pessoas vivendo na miséria, poluição do ar, rios morrendo, mares ácidos, espécies inteiras extintas, florestas caindo, fogo ardendo em todas as partes, calor insuportável? Quando nos habituamos a viver em geladeiras, sendo que muita gente passa a maior parte do tempo com ar condicionado ligado? Quando relevamos o fato de que a maioria das comidas contêm agrotóxicos ou hormônios, que podem causar, a médio e longo prazo, problemas neurológicos, dificuldades respiratórias, irritações na pele, manifestações gastrointestinais, alterações no sistema reprodutor e câncer, que matam milhares de pessoas no mundo inteiro todos os anos? Quando aceitamos que cinco pessoas morrem a cada minuto por causa de tratamento médico inadequado e supostos remédios cujos efeitos colaterais são semelhantes ou piores aos citados há pouco? Quando começamos a pensar que felicidade era algo a ser comprado, que bem-estar era um produto e não um direito básico de todos? Quanto tempo demorou para a máscara ser considerada normal ou para a distopia ser normalidade?
É claro que sempre foi assim. A história humana é uma sequência de tragédias permeadas por conquistas dúbias pelas quais foi preciso guerrear, matar e morrer. Ainda que todos tenham em comum a busca pela felicidade, quantos realmente a alcançam? Por outro lado, quando estava na balsa, senti que ainda há algo bem vivo dentro de mim. Algo que grita ao ver esse mundo, do qual faço parte, mas que poderia ter sido, ou ainda pode vir a ser? Tão melhor do que está sendo agora. Por isso, por ter pensado essas coisas todas e não saber bem qual mágica será necessária para evitar o inevitável, mas querendo acreditar que ela existe, que está mascarada, mas viva, como eu, e que, de alguma forma, estou a serviço dela, me fez, rapidamente, voltar os olhos para o livro que tinha em mãos.
dolandirici thank you.