35) O Mundo Está Queimando (Quando as Nuvens Dançam – Reflexões de Quarta-Feira)
Às vezes parece que tudo já foi dito, escrito, explicado. Não há nada mais a dizer. Há uma perplexidade diante da realidade que cai incendiada. Temos acesso a todas as informações e não por isso sabemos mais. Talvez nunca tenhamos entendido tão pouco do que está ao nosso redor. É como uma orquestra macabra, uma verborragia pandêmica, uma pandemia verborrágica, na qual todos falam ao mesmo tempo sem realmente falar, sem construir a ponte que leva ao outro. Que é ele mesmo. E a vida se esvai, de infinitas formas, ela é engolida pelo fogo da ignorância, pela ganância que eleva suas labaredas em pleno esplendor, mostrando-nos toda sua gloriosa beleza assassina, todo o seu imenso pavor. Pois não há mais aqueles que matam e aqueles que morrem. Tudo é morte em movimento. É a cultura da morte.
Não entender que aquilo que destrói e dói é tão meu quanto seu é exatamente o que nos leva a queimar. É o que arde lá no fundo, essa falta de sermos o que somos, esse não conseguir nos levantar e gritar. E mesmo se fizéssemos, iria adiantar? Quem sabe estamos gritando, sem conseguir nos escutar? Quanto tempo conseguiremos prosseguir e fingir, que tudo isso é uma fase, que o que está acontecendo não está acontecendo, que o mundo não está arrefecendo diante de nossos olhos impávidos, ávidos por ver a noite humana em ondas, implodindo a estrada que um dia pensamos possuir? Quando tempo queremos dormir? Tapando os ouvidos para não captar, por detrás do barulho, as vozes a urrar, não muito longe de nós, tudo a desabar como um castelo de cartas, sem fundação, sem noção, sem sentido. O coração partido e calado diante do fim tantas vezes anunciado. Consegue ouvir? É ela que está lá fora, a foice reluzente, a mão gelada, o coração em chamas, o chamado ardente, convidando-nos a entrar e não hesitar, a mergulhar no desvario, pois tudo que há não passa de vazio. Você está vendo? Aquela que nos espera glacial e flamejante, consumida por paixão carnívora, por sua fome fervorosa, faminta pelos nossos sonhos, incendiada pela nossa existência, oferecendo-nos suas flores de gelo e suas brasas de nada. Afinal, vivendo, a gente está sempre morrendo.
A verdade é que uma parte de nós quer isso. Da mesma forma que a vertigem é tanto medo quanto desejo de cair, também viver é medo e desejo de partir. É o chegar que nunca há de vir, é se enraizar no eterno mudar. E ainda que não haja nada a dizer, há o chorar e o sorrir, o sorver do espanto até ele se extinguir. Há também o orar. Em silêncio e sem palavras, sem deuses presentes nem ausentes. Cada gesto e cada respiração pode ser uma oração para um universo no qual não sabemos existir. Rezar seria abrir os braços, ousar pular, sem paraquedas, confiar na grandeza que nos acolhe, no abismo sem fundo que nos engole, de um mundo ao avesso no qual morrer é o preço da viagem. Viver é, talvez, conseguir se oferecer, se entregar e servir, sem pensar nem compreender, conquistar a bênção do próximo instante, como a gente conquista uma terra distante, reverenciando o espaço restante e dançando o poente de uma dança eternamente cadente, a mais antiga dança que há. Essa coisa obscura que a gente chama de amar, essa flama que nos nutre ao nos matar, pouco a pouco e continuamente, que nos mente para nos poupar, essa permissão de nos equilibrar no precipício, a emoção de sempre voltar ao início, até mesmo no vício, sem desistir da cura, desbravando a vasta loucura, navegando a triste ternura de ser um mundo que queima.