6 Correntes que Libertam (Quando as Nuvens Dançam – Reflexões de Quarta-Feira)
Sou uma daquelas pessoas que não olham com saudade para a infância. Pelo contrário, há uma névoa ao redor dos acontecimentos daqueles tempos. Por mais que tenha havido alegrias, houve também uma sensação recorrente de desencantamento que acompanhou grande parte dos primeiros anos de minha vida. Como se algo tivesse disso perdido ou não se encaixasse. As memórias não são límpidas e despreocupadas, a realidade parecia ter pontas afiadas nas quais a gente podia se cortar a qualquer momento. Cresci carregando uma tristeza que não era só minha (acho, aliás, que ela nunca é só nossa…), e passei anos lutando contra uma paralisia emocional que se projetava sombriamente em meus dias e dificultava tudo que eu fazia. No início da juventude, alternava entre momentos de letargia, nos quais eu ficava prostrada, e momentos de euforia excessiva, com comportamentos impulsivos e arriscados.
Durante muito tempo, pensei que não me casaria ou teria filhos. Família para mim não era sinônimo de felicidade. Até mesmo a raiz etimológica da palavra confirmava meus piores medos. Família vem do latim ‘familia’, que significava originalmente “o conjunto dos escravos da casa”. Mesmo sem saber disso, eu temia a escravidão da alma, o roubo da liberdade sonhada através de laços indissolúveis e destinos enredados, como joias preciosas que se emaranham numa gaveta – por mais valor que tenham, pode ser que nunca mais possam ser usadas. Talvez fosse o temor do que eu havia sentido quando criança, o terror velado de pessoas que convivem diariamente, umas ao lado das outras e, ao invés de desfrutarem juntas, muitas vezes mais se atrapalham do que ajudam, perdendo-se constantemente em expectativas frustradas, nunca enxergando-se ou amando-se verdadeiramente pelo que são.
Os anos acabaram me fazendo voltar atrás e reavaliar meus sentimentos. Tive que revisitar meus traumas, reciclar minhas impressões emocionais, dar um novo significado para o passado e tentar reescrever meu mundo sem repetir o que eu havia aprendido. Pela minha experiência, a vida sempre ocorre em espirais cíclicas, trazendo situações novas, mas sutilmente parecidas com o que houve antes, proporcionando oportunidades de mudanças mais profundas. Ao reinventar meu olhar, passei a entender a família como um caminho espiritual onde a estreiteza dos laços nos convida a nos libertar da estreiteza de nossas ideias. Pode haver uma qualidade quase monástica em viver numa intensa proximidade com as mesmas pessoas por muitos anos a fio. Não ser escravizado pelas dores de uma intimidade muitas vezes desgovernada com aqueles que conhecem todos nossos abismos demanda a prática incessante do autoestudo e a busca incansável da liberdade, aquela que podemos conhecer apesar das muitas prisões do cotidiano e também graças a elas. Penso hoje que viver em família é, em grande parte, caminhar sobre pedras, uma peregrinação que pode nos endurecer e suavizar, ao mesmo tempo, descortinando uma ternura atônita que, um dia, talvez, finalmente possamos reconhecer como amor. Não apenas um processo cármico ou genético, um amor inevitável e obrigatório, mas exatamente aquele do qual precisávamos para ser quem somos e, quem sabe, até mesmo ir além do que sempre pensamos ser.