Histórias de Ninar (Quando as Nuvens Dançam – Reflexões de Quarta-Feira)
Duas vezes por semana, conto a meu filho, de quase seis anos, uma história sem fim. É um romance infanto-juvenil, um dos livros que comecei a escrever anos atrás, antes mesmo de ser mãe e, por alguma razão, nunca acabei. Terminou na gaveta dos sonhos moribundos, nem vivo nem morto, como tantos outros. Ontem mesmo, quando recomecei a contar a história de onde tinha parado da última vez, ele me pediu que ela nunca, nunca acabasse, que durasse para sempre, sempre. Foi então que ele se lembrou:
_Mãe, mas… E quando você morrer? Não vai mais poder contar a história. – e me olhou, subitamente preocupado. _Acho que você vai morrer antes de mim.
_Normalmente, é assim que tem que ser, querido. Os pais morrem antes dos filhos.
_Mas não quero que você morra!
E ele começou a chorar, aos soluços, um choro doído, repetindo várias vezes que não queria que eu morresse. Reconheci aquele choro de mim mesma, do medo que às vezes sinto do dia em que não acharei mais o abraço de minha mãe. Logo, eu o abracei, num daqueles tantos momentos da maternidade nos quais a gente não faz a mínima ideia do que deve fazer. Aliás, como na maioria dos momentos de minha vida. Pedi então que colocasse a mão no coração e respirasse dentro da mão. No início, ele teve certa dificuldade, mas pouco a pouco foi conseguindo esticar a respiração até que ela elevasse seu peito e sua mãozinha.
Enquanto isso, comecei a contar a ele que os quatro amiguinhos de nossa história tinham sido guiados por uma entidade flamejante que andava para trás, de olhos fixos neles, através da floresta, até a Árvore Sagrada, onde o guia acendeu uma fogueira com as labaredas de seus cabelos incandescentes e, logo depois, desapareceu. Ao mesmo tempo, abriu-se mais um portal mágico no tronco da árvore, levando as crianças dessa vez a outra floresta luxuriante, onde a magia não tinha que se esconder, cheia de vaga-lumes fluorescentes e coloridos, azuis, verdes, lilás, cor-de-rosa, laranjas, e entre eles estendeu-se um caminho dourado que levou as crianças até a mais linda das cachoeiras.
A torrente caía num lago cujas bordas eram ocras e o centro, onde despencavam águas límpidas e abundantes, se abria num verde ofuscante. As crianças ficaram quase sem fôlego diante da beleza estonteante do lugar. Foi quando, pouco a pouco, elevou-se da espuma algo que elas não entenderam. Era um peixe? Um tronco? Não. Era um turbante cor de ouro e uma face que lhes sorria por detrás de uma cascata de pequenos brilhantes pendendo do arranjo da cabeça. Saiu então, lenta e suavemente, da água, toda vestida em tons fulvos, amarelos e cor de mostarda, uma aparição fulgurante e serpentina, que os envolveu calorosamente com seu sorriso fluídico e seu olhar de amor abundante e sem medidas.
Falando sem falar, ela pediu que cada criança colocasse a mão sobre o peito, respirasse dentro da mão, e pensasse em algum ser amado que tinha morrido. As crianças obedeceram sem pestanejar, embaladas pelo som da voz que mais parecia o tilintar de sinos em algum templo perdido nas montanhas. A primeira se lembrou de um passarinho de cabeça alaranjada e peito azulado, que bateu contra a vidraça da casa e morreu pouco depois. Ela o havia enterrado junto com sua mãe. A segunda pensou em um gatinho todo pretinho, de olhos amarelos e vibrantes, que dormia colado aos seus pés e se foi, depois de dias adoentado. O menino logo viu o cachorro que tinha passado anos ao seu lado, pulando e brincando sem parar, até que um dia não quis mais levantar nem comer e, por fim, parou de respirar. A última voltou para o dia em que sua avó, deitada na cama, sob a luz grosseira de algum hospital, algumas horas antes de partir, cantou a canção que elas cantavam sempre juntas, cuja letra em francês dizia: “quand il me prend dans ses bras, je sens mon coeur que bat, je vois la vie em rose…”
À medida que as crianças se lembravam, uma lembrança engatava na outra, os mortos desapareciam e reapareciam, cheios de vida, em tempos que se confundiam, a cachoeira rugia e a voz líquida lhes mostrava que, na verdade, os mortos estavam bem vivos. Em alguma floresta encantada, no fundo mais fundo da emoção, eles ainda miavam, latiam, cantavam e dançavam e nunca, nunca deixavam de existir. Quando cheguei a essa altura da história, olhei para meu filho e ele dormia profundamente, a mão serena, pousada no peito apaziguado, subindo e descendo devagarzinho, ao som da música de uma mata longínqua e próxima demais do coração.