Sobre Ser Mulher (Quando as Nuvens Dançam – Reflexões de Quarta-Feira)
Muito cedo, percebi que todos os livros da escola, como também a maioria daqueles que me eram apresentados dentro e fora da vida escolar, tudo o que eu precisava estudar e ler para “ser alguém” na sociedade, havia sito elaborado por homens. Era como se toda uma parte da humanidade, aquela que dá à luz a ela, houvesse sido deixada de fora na hora de pensar nosso mundo. Com o tempo, essa percepção não cedeu, pelo contrário. Observando à minha volta, entendi que não era apenas uma omissão. Era um desequilíbrio, uma tragédia anunciada. Acredito obviamente na igualdade de direitos, mas isso não quer dizer que as diferenças entre homens e mulheres não existam. Diferentes caminhos físicos, psicológicos e históricos suscitam diferentes respostas à existência.
Quando pensamos nisso, surge a pergunta: como teria sido um mundo pensado majoritariamente por mulheres? Aonde o autoconhecimento levaria as mulheres sem a influência do silêncio das mulheres que viveram antes delas e das visões do mundo, impostas pelo sistema vigente, dos homens que pensaram o mundo antes delas? Quando falamos de autoconhecimento, geralmente pensamos em mestres e filósofos homens. É claro que temos uma humanidade em comum, mas o percurso interior que nos coloca em contato com ela pode ser bem diferente. Fato é que, em nosso mundo, a mulher tem que se entender primeiro através dos homens para somente então ousar ser mulher. Há pouquíssimas grandes mestras mulheres em quem amparar nossa sexualidade, nossa espiritualidade, nossa filosofia. Eu mesma não as achei nem fui apresentada a elas quando mais precisava, quando as respostas prontas não mais me bastavam. Faltava-me algo: um acolhimento, um pertencimento. Era um mundo cheio de cantos, linhas retas, pontas afiadas, sem curvas, ondas e círculos. Para chegar mais perto de mim, tive que largar as minhas rédeas por longos períodos. Perder o controle, sair do conhecido. Arriscar soltar quem eu pensava ser para buscar quem eu poderia ser.
Entendi que nos ensinam a tentar caber no mundo, mas ninguém realmente cabe no mundo. Existe uma diferença entre encaixar-se e pertencer. Entre ser apenas mais um número e ser aceito como único. Entre funcionar para produzir e compartilhar para viver. Demorei muito para chegar às rodas de mulheres e mesmo nelas, muitas vezes, paira a sombra da desconfiança e competição, como se algo fundamental tivesse sido esquecido e nunca mais recuperado: que precisamos uns dos outros. Que todos são importantes e ninguém é descartável. Ainda que não saibam como viver isso, muitas mulheres sentem natural e suavemente esse chamado de um mundo mais amoroso no qual a existência recupera seu valor verdadeiro.
Afinal, a mulher enfrenta a morte e muitas vezes morre para dar à luz a um novo ser. Para quem quer aprender, nenhum mestre poderia ensinar melhor sobre a preciosidade da vida do que um encontro marcado com a própria mortalidade em prol do amor. A maternidade ensina a devoção religiosa sem que seja preciso ter uma religião. O sangrar a cada mês nos fala dolorosamente sobre os ciclos e extrai de nós a humildade de sermos natureza. A menopausa nos invade com a imensa responsabilidade que é superar a vaidade. As fontes do saber são inúmeras, há infinda sabedoria oculta no simples ser mulher. Muitas vezes, é no contato com a terra, os ventos, as matas e as águas, na entrega ao chão que pisa e ao fogo que sente, que a mulher desabrocha. Quando isso acontece, ela começa a ouvir uma antiga canção de um mundo adorado e devastado, que chama e, sem descanso, segue sofrendo e gozando, clamando e implorando, cantando e dançando, rindo e chorando, ardendo em paixões, febres e chamas, morrendo para o que foi e renascendo, uma vez mais, na esperança de que despertem, enfim, todas as mulheres.