Se Eu Quiser Falar com a Deusa (Quando as Nuvens Dançam – Reflexões de Quarta-Feira)
“Vigiai e orai”, sugere aquele que hoje é chamado de “livro dos livros”. Mas o que é vigiar e orar?
Vigiar para mim é o mergulho no silêncio. É quando paro de falar, de fazer, de pensar até, ou de perseguir pensamentos que surgem sem cessar. Não é fácil parar. Talvez seja uma das coisas mais difíceis de se fazer num mundo hiperativo. No entanto, se a gente não para o nosso mundo, o nosso mundo para a gente, mais cedo ou mais tarde, e nem sempre é agradável quando isso acontece. Mas é certamente melhor do que não parar nunca. Afinal, quase mais que respirar, é imprescindível sentir que respiramos. Como saber que estou viva sem contemplar minha existência, sem me apropriar daquilo que define minha presença neste instante? Meu próprio estar me chama, é um chamado que volta e meia ressurge, e me pede pelo que tenho de mais valioso: por minha atenção. A atenção é rara, pura e generosa, como disse Simone Weil, ela é um fazer sem fazer, um esforço sem esforço, um soltar de si para acolher o ser. A atenção não julga, ela percebe, sente, abraça, cuida. É nela que começo a despertar para o fato de que ainda estou viva.
Já orar, ah, orar… É a ação que brota da atenção. Não é uma reação. É mais como um parir de si. É a extensão do cuidado que vem de dentro, quando meu entender vem de meu perceber e resolve dar à luz um fazer suave, reverente, ritualístico, um fazer que envolve e contorna o mundo como a água fluida esculpindo rochas a caminho do mar. É quando o que penso, falo, faço, vem daquele lugar maior onde sei que não sei. Não tem a ver com afirmar, controlar, acertar. É muito mais um sugerir, sublimar, apurar. É um querer delicado, um desejar ser digno da música, ser apto a tentar traduzi-la de alguma forma, sem presunção e sem covardia. É quando a própria música me pede para soltá-la no ar, me impele a elevar-me, voar e dançar com ela, e fazer da própria dança uma oferenda para todos aqueles que conseguem escutar. É, também, a esperança projetando-se, como flecha lançada pelo arco da vida que se enverga para poder chegar ao universo que é o outro, sendo que o primeiro outro sou eu mesma. Antes de tudo, é a esperança de que eu escute. E como o outro sou eu, é a esperança de que os outros escutem e que possamos dançar juntos um dia.
Portanto, falar com Aquela de que sou feita é estar pronta e não cair na tentação de ser menos nem mais, nem diferente, ou de simplesmente ser tão diferente quanto todos os outros e, assim, ser igual. É não me limitar à mesquinha solidez, à efêmera carne, que também sou, mas celebrá-la como instrumento, tocando em cada movimento a mais antiga canção que todos sempre ouviram e nunca ninguém acabou de tocar. Uma canção sem fim, que vem do Eu que sempre será, que volta para Ele, passando pelo eu que está sempre acabando, este eu que hoje aqui senta, escuta, escreve e fenece em seu próprio desabrochar. É a canção-Mãe, da terra brotando, da raiz fincando-se, do tronco subindo, da copa se abrindo, da folha e do fruto brotando, crescendo, caindo, e da pequena folha soltando-se e emocionando-se na imensidão.