Guerra de Cegos (Quando as Nuvens Dançam – Reflexões de Quarta-Feira)
É uma época de debates acalorados, o que não acho ruim. Conversando com um grande amigo, ele me disse que sou “tolerante demais” por tentar entender e dialogar com pessoas que têm ideias totalmente contrárias às minhas. Aliás, muitos de meus amigos simplesmente “deletam” ou cancelam aqueles que pensam diferente. Não digo que eu não tenha me sentido tentada a fazer isso, dependendo do pensamento que as pessoas em questão expressam, muitas vezes distantes demais de minha realidade. No entanto, não consigo simplesmente deletar pessoas, a não ser realmente quando a violência do discurso é tanta que não há espaço algum para diálogo. Acho que para navegar bem é importante saber o que os outros estão pensando como também é perigoso ficar fechado em um círculo de pessoas que pensam exatamente como eu. Acontece muito, é claro, depois de conversar bastante com pessoas de diferentes ideologias, que eu me veja obrigada a anunciar que temos que concordar em discordar, pois os argumentos se esgotam sem que tenhamos conseguido achar um caminho em comum. Ainda assim, quando isso ocorre, há pelo menos uma coisa que nos une. Ao conversar, conseguimos nos respeitar em nossas diferenças. Parece pouco, mas é imenso. Se fosse possível ter mais disso, a situação com certeza não estaria como está.
Por que não conseguimos nos comunicar? A verdade é que estamos em guerra. Mesmo que a guerra de armas só esteja acontecendo em alguns lugares específicos, nos outros a guerra é moral. Se olharmos para a história da humanidade, veremos que há muito mais tempos de guerra do que tempos de paz. Não sabemos viver em paz. Não fomos educados para isso. Não sabemos nem mesmo o que é estar em paz. Vivemos insatisfeitos, infelizes, ignorantes, incapazes de amar e preservar a natureza em nós e ao nosso redor. Somos seres vazios tentando desesperadamente preencher nosso vazio com certezas vazias. Queremos respostas prontas, coletivas, que não nos façam pensar, que sobretudo não nos façam duvidar de nós mesmos, pois isso seria um sinal de fraqueza. Levantamos nossas certezas vazias como estandartes de guerra e lutamos enlouquecidamente, matamos e morremos por elas, como se isso fosse glorioso. Afinal, pensam muitos, matar pelo país não é crime. Como também pensam que matar pela família, pelos amigos, pelos ideais, não é crime, que matar bandidos, simplesmente “deletá-los” da face da terra, não é crime. Ou então que matar moralmente, “deletar”, é o melhor caminho, sem se perguntar se talvez não é justamente esse o princípio de toda guerra. Onde começa, onde acaba o crime? Estamos sempre nos justificando, afirmando que os outros são piores, sabem menos, são mais torpes e mais vis. Ainda assim, por mais certeza que tenhamos de tudo que pensamos, nada disso nos preenche de verdade.
Para preencher o vazio o caminho é amar no sentido mais vasto da palavra. Mas eu não sei amar, dirão alguns. E quem é que sabe? Amar se aprende amando. Um dia pode ser que eu entenda que amar não é esperar que o outro me faça feliz, mas é esperar que ele seja feliz e, se possível, contribuir com isso. E esse outro não é só aquele de quem eu dependo ou que está muito perto de mim. É o outro maior, aquele que não vejo, que não necessariamente pensa como eu, que muitas vezes nem sei que existe, mas que faz parte de mim mesmo assim. Eu começo a amar o outro desconhecido quando percebo a impossibilidade de me conhecer. De repente, descubro que estar com o outro, qualquer que seja ele, é sempre uma forma de buscar a mim mesma, pois me vejo nos olhos daquele que me descobre. Na junção dos olhares, no encaixe daquilo que cada um, inclusive eu mesma, vê em mim com o que todos os outros veem, acontece a pessoa que chamo de “eu” e todos os “eus” têm em comum o se ver nos olhos dos outros.
Portanto, contribuir com a felicidade alheia é contribuir com a minha felicidade. É plantar minha semente de amor e desejar que a terra e a chuva se encontrem, que o sol volte a brilhar, que o dia e a noite dancem, para que a beleza possa brotar. O nome disso não é tolerância. É simplesmente entender que a guerra não leva necessariamente à paz e que a paz não é necessariamente a ausência de guerras. Não se trata de aceitar tudo o que o outro diz ou faz, pelo contrário. Tenho que me levantar diante das injustiças, não só por mim e pelos injustiçados, como também pelos outros, pelos injustos. Tenho que falar, debater, lutar se preciso, mas entender que não estou lutando de um lugar mais elevado ou superior: estou lutando pelos ignorantes, pelos infelizes, por todos aqueles que andam, se acham e se perdem no vazio, como eu. Não é uma absolvição, é simplesmente uma constatação. Como quando tiro o dedo de meu filho da tomada e constato que ele não sabe o que está fazendo. Faço isso sem raiva, sem delírios de grandeza, porque o que me faz poder ajuda-lo é o fato de que eu mesma muitas vezes não soube o que eu estava fazendo. Num mundo dilacerado pela falta de amor e cuidado, cegos são todos aqueles que não amam. Todos nós. Quem não ama não sabe o que está fazendo, não consegue enxergar o que não consegue sentir nem entender. No final das contas, amar é construir pontes sobre abismos. Só isso.