Ter filhos nos traz sempre novos desafios. Um deles, que muitos famílias estão enfrentando hoje em dia, é o controle do que as crianças consumirão nas telas. Há pais que proíbem totalmente o uso dos eletrônicos, outros que dão acesso livre, e muitas variantes entre esses dois opostos. É um tema bem delicado. Pessoalmente, acho que, como com tudo na vida, é preciso achar o caminho do meio. Não dá para negar que computadores, tablets e celulares são uma parte de nossa realidade atual. Ainda que eu tenha muitas ressalvas ao uso das telas, sei que também têm um lado positivo quando usadas com discriminação e consciência. Por exemplo, compramos vários aplicativos educativos interessantíssimos que têm ajudado na educação dele. Por outro lado, proíbo que meu filho jogue joguinhos com armas e tiros, de matar, mas entendo que é importante manter em mente que cada caso é um caso.
Recentemente, meu filho descobriu Roblox, uma plataforma de games acessada no mundo inteiro por mais de 120 milhões de crianças e adolescentes abaixo de 16 anos. Ele experimentou alguns jogos bem populares entre os amiguinhos dele. Um deles se chama “Rainbow Friends”, um game de terror que, inicialmente, parece inofensivo, como os antigos joguinhos onde sempre fugíamos de monstros ou fantasmas que queriam nos devorar. Meu filho ficou bem empolgado, começou a querer jogar todos os dias e até descobriu as músicas de cada monstrinho na Internet, aprendendo algumas delas de cor e cantando em voz alta ao longo do dia. Prestando mais atenção, a letra das músicas me assustou. Passei a me interessar mais pelo que havia por detrás daquilo. Como ele não sabia explicar muito bem, fui fuçar na Internet. O game é sobre uma criança e alguns coleguinhas sequestrados durante um passeio escolar e levados para um parque de diversões, onde são presos numa instalação estranha em que o objetivo é sobreviver por cinco noites. Eles têm que realizar várias tarefas, completar missões e escapar dos monstros impiedosos, de aspecto bobinho, que os caçam o tempo inteiro e cujo único objetivo é matar. Meu filho não sabia me explicar nada disso, só queria mesmo vencer os desafios e escapar dos monstros. Vimos então um vídeo juntos sobre a “triste origem dos Rainbow Friends”.
A historinha é a seguinte: Rainbow Friends foi um show criado por um empresário para as pessoas se divertirem com suas famílias. Como na Disney, ele contratou alguns personagens que se vestiam com fantasias coloridas, cantavam e dançavam para o público, que adorava as apresentações. Foi um sucesso até que um parque de diversões foi aberto ao lado de onde eles se apresentavam. O homem perdeu todos os clientes e o estabelecimento ficou completamente vazio. Sem dinheiro, ele não conseguiu mais pagar seus funcionários, que acabaram indo embora, e ficou sozinho. Segundo a história, “ficar sozinho pode acabar mudando uma pessoa”. O homem decidiu então montar um show “incrível” para voltar a atrair todos os clientes. Para isso, ele acreditava precisar de novos funcionários que nunca mais o deixassem na mão. Logo, ele atraiu, ludibriou e sequestrou quatro pessoas, transformando-as à força nos monstros que ele queria apresentar no show. Voltou então a abrir o estabelecimento e ganhar muito dinheiro. Infelizes, os monstros exigiram que ele revertesse o que lhes havia feito, pois queriam voltar a ser quem eram antes, mas o empresário apenas riu e respondeu que era irreversível, eles seriam assim para sempre. Fulos da vida, os monstros se uniram, o capturaram e também transformaram em monstro. O local voltou a fechar, mas rumores diziam que os monstros continuavam ali, esperando por visitantes desavisados para transformá-los em um deles.
A história me pareceu bem sombria, mas também muito profunda, pois fala do desespero de um homem diante do próprio fracasso em um mundo competitivo e sem alma, de sua fixação em dinheiro, sua subsequente falta de ética e empatia, e de como pessoas comuns podem se tornar monstros em situações extremas. As músicas dos monstros têm um ritmo bacana, mas as letras chegam a ser mais terríveis do que o jogo, especialmente quando repetidas várias vezes por uma criança. Por exemplo, a música “Sick With It” do monstro verde, o “Green”, começa com a frase, em inglês: “Na maior parte dos dias eu me odeio”. A música narra a náusea que o Green sente diante da vida, do fato dele ter uma doença mental e viver sozinho, de não conseguir parar de cometer crimes, ter que ficar tomando pílulas para aguentar a própria ansiedade e, no fim, ele diz para todos que sofrem o seu abuso que ele também gostaria de se livrar de si mesmo. Todas as músicas dos monstros, nesse e em outros jogos, como o “Doors”, por exemplo, também muito conhecido entre os pequenos, são obscuras e assustadoramente realistas, descrevem as ruas sem saída, os “monstros” da solidão, da ansiedade, do medo e da raiva.
Nos Estados Unidos, pesquisas recentes descobriram que a taxa de suicídios é mais alta do que a de homicídios entre crianças e jovens de 10 a 24 anos, e ela não para de crescer. Quando tomamos consciência disso, percebemos que a teia que originou esses jogos e monstros aparentemente “bobos” é bem maior e mais complexa do que parece à primeira vista. O “sucesso” dos games contém um grito de angústia, um chamado por socorro, de toda uma geração que os está criando e também daquela que os consome. Ou seja, consciente ou inconscientemente, eles trazem à tona temas muito sérios, que ainda não estão recebendo a devida atenção, uma pandemia silenciosa que gera verdadeiros monstros.
Obviamente, são temas impróprios e incompreensíveis para uma criança de 8 anos. No entanto, já que os monstros entraram em nossa casa, meu marido e eu conversamos bastante e optamos por uma abordagem não-violenta da questão. Decidimos não proibir totalmente o acesso aos jogos, mas o restringimos aos fins de semana, encorajando os jogos mais interativos durante a semana, como o xadrez, por exemplo. Sabemos que monstros sempre foram temas recorrentes da literatura e do imaginário infantil, uma maneira de nossos ancestrais prepararem as crianças para o mundo real, em que monstros sem dúvida também fazem parte da realidade. Tenho conversado com meu filho sobre as músicas que o atraíram e ele aprendeu de cor, o que me permitiu explicar o conceito de “metáfora” e como esses monstros e músicas falam indiretamente de dificuldades reais do mundo em que vivemos. As nossas conversas são mais ou menos assim:
“Mas os monstros do joguinho existem, mamãe?” Sim, os monstros do joguinho existem na dimensão do joguinho, meu filho, mas no mundo real também há muitos monstros que vivem dilemas parecidos com as letras que você decorou. Eles são realmente muito perigosos e temos que ficar atentos para não sermos engolidos por eles. “Como aquele homem que atacou você uma vez no meio da rua?”. Sim, como ele. Era uma pessoa muito doente, que estava sofrendo e não sabia o que estava fazendo. Para podermos nos defender desses e de outros monstros e proteger as pessoas que amamos, temos que tentar entender de onde eles vêm e o que faz com que uma pessoa se torne um monstro. Mais ainda, temos que ajudar aqueles que estão vulneráveis, as potenciais vítimas dos monstros, os possíveis futuros monstros, pois ninguém nasceu para ser sozinho, todos precisam de amigos e cuidados, todos nascem querendo ser amados. Lembre-se disso, querido: num mundo cheio de perigos, só o amor salva.
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