43 –  somos todos estrelas (Quando as Nuvens Dançam – Reflexões de Quarta-feira)

Foto por Claudio Belizario / edição e arte por A.Y.

Esses dias, depois de muitos anos sem poder viajar à Europa nem visitar um museu europeu, chorei novamente ao me ver diante da “Noite Estrelada Sobre o Ródano” de Van Gogh, exatamente como me aconteceu da primeira vez. Eu tinha me esquecido desse episódio e não teria lembrado caso nunca tivesse tido a oportunidade de rever o quadro. Não sei dizer por que essa obra específica me toca tanto, só sei que, quando uma pintura, uma música, um livro ou um filme nos emociona profundamente, é tanto um mistério quanto uma dádiva. É uma expansão da alma. Senti que cada pincelada daquele quadro equivalia a uma respiração, um sentimento, era a culminação de toda uma vida dedicada à arte. O fato de Van Gogh nunca ter chegado a ser reconhecido em vida, embora seus quadros hoje valham muitos milhões, com certeza acrescenta perplexidade à experiência de seu olhar único, sua forma de entender e compartilhar a percepção do que estava ao seu redor. De fato, é curioso: um homem que, em seu tempo, era um “ninguém”, atualmente é um artista celebrado no mundo inteiro.

O que, é claro, leva a muitas reflexões. Numa cultura que faz o culto ao indivíduo, erguemos altares para os deuses do Olimpo: atores, astros, artistas, celebridades, influenciadores, bilionários, enfim, os “vencedores”, aqueles que venceram a corrida contra o tempo, deixando para trás todos os míseros outros, os “perdedores”. Seguimos esses seres privilegiados com grande interesse, olhamos para onde apontam os holofotes e somos indiferentes ao que está por detrás das cenas, nos bastidores de tudo que nos distrai. Não só ignoramos o imenso número de pessoas trabalhando no anonimato, que permite que algumas poucas pessoas se sobressaiam, como também escolhemos, consciente ou inconscientemente, não olhar para todos os que não “existem” e são devorados pela invisibilidade. 

Nessa dança macabra onde poucos têm um lugar ao sol, quem somos nós? Conseguimos nos convencer que temos um propósito ou aceitamos que fazemos parte da grande massa que desaparecerá da mesma forma que veio, sem deixar rastros nem se cravar na memória coletiva? Um dia talvez, muito cedo, quando ainda não tínhamos como nos defender da tirania, tenham nos feito a pergunta fatídica: “quem você quer ser quando crescer?”. Pode ser que tenhamos realmente pensado que no futuro seríamos finalmente alguém, o que pressupunha que já naquela época acreditávamos docilmente que não éramos ninguém. Talvez tenhamos passado toda a vida correndo sem parar, possivelmente sem sucesso, para tentar finalmente alcançar o pódio do reconhecimento, nosso e alheio. Espectadores do sucesso dos outros, dos poucos que chegaram “lá”, passamos indiferentes pelas sombras que dormitam nas esquinas da humanidade, que aparecem e desaparecem sem nome. Sombras como nós, algumas um pouco ou muito mais, outras um pouco ou muito menos privilegiadas, mas todas invisíveis partes do grande fluxo destinado ao abatedouro do esquecimento.

Então, com o passar do tempo e dos ventos, e com a morte que se aproxima, uma nova pergunta se impõe: e se nos amigássemos com a ideia de não ser ninguém? E se saíssemos gradualmente do surto coletivo de viver uma vida tensa, estressada, violenta e cega para as pequenas e grandiosas belezas de cada instante e cada centelha de existência que cruza nosso caminho, e se celebrássemos simplesmente quem somos e os outros à nossa volta? E se na nossa unicidade começássemos a reconhecer a preciosidade de cada ser vivo que habita o planeta? E se cada um de nós fosse deus, e não somente aqueles que conseguem se sobressair ou ter acesso ao sonho, à senha do cofre, ao que o restante nunca poderá possuir? Talvez, talvez, a felicidade não fosse mais um privilégio de poucos. Talvez, talvez, o mundo se abrisse, vasto e desconhecido, verdadeiramente mágico, convidando-nos a compartilhar o mistério absoluto que somos, todos conectados e semelhantes em nossa infinita diversidade. Um mundo de ninguéns, em que este exato momento reflete nossa forma única de nos expressarmos, é a expressão da nossa obra de arte, e compõe, junto a todas as outras, o incrível e fascinante mosaico universal.