Ela acorda, se senta, fecha os olhos e sente o mundo sem se deixar invadir por ele. Agora não. Não quer imagens ou barulhos, não precisa do ruído constante do desmoronamento da sanidade. Só sente. O ar entrando e saindo do corpo, escuta algumas gotas de chuva se chocando contra as telhas, sabe que passarão logo, o canto dos pássaros anunciando a importância da vida, e constata aliviada que hoje não está sendo sequestrada por preocupações. Não. Hoje não. Está aqui: viva.
Levanta, se olha no espelho, lava o cansaço dos anos, sacode o corpo para soltar o tempo, percebe nos olhos o chamado. Não é um dia qualquer. É preciso pelo menos ajeitar um pouco o cabelo, não muito, porque não tem jeito mesmo, então é mais uma questão de abraçar o desajeito, se amigar consigo, ficar contente com o reflexo do outro lado, qualquer que seja ele. Escolhe um vestido leve e branco, porque é assim que tem que ser, uma bandeira de paz, uma oferenda de simplicidade, a maior das elegâncias. Vai até o jardim, colhe umas poucas flores, as mais bonitas que encontra, e sai sem pressa, sem pausa, sem sapatos, sem relógio, sem pensar.
Atravessa a rua. Não se importa com o asfalto e os carros, com a cidade que cresce, não quer a tristeza das árvores caindo. Hoje não, pensa. Hoje é o dia Dela. Já dá para ver o azul sem fim dali mesmo, da servidão, o chão sequinho, nem parece que chuviscou há pouco. Segue andando, sem hesitar, mas com suavidade. Afinal, o encontro é importante, amoroso. Anda com a gravidade dos que têm consciência de si e a leveza de quem desistiu de planejar.
Chega à praia boba de alegria, sentindo o abraço do infinito traduzido em grãos de areia, cruzando os poucos metros que levam a Ela. Para.
Finca os pés com reverência, à espera solene de que a água os cumprimente, como fazia quando era criança, confiando plenamente que há uma comunicação acontecendo. Iemanjá a sente e conhece, assim como ela sente e conhece Iemanjá. Deita as flores nas ondas, não carecem rezos e altar. Eis a morada de todas as igrejas. O lugar onde ela se lembra que, contra o avanço sistemático da morte, da banalidade do mal, da falta de empatia, a maior rebelião é a poesia.