
Estávamos sem luz há dois dias, esperando que chegasse a companhia de eletricidade, o que por aqui pode demorar. Tentei reclamar várias vezes por WhatsApp, por telefone e pelo aplicativo e só era atendida por robôs, o que me irrita a cada vez que tenho que ligar para um banco ou qualquer serviço. Curiosamente, todo mundo com quem falo detesta isso. Como muitas outras coisas, acabamos simplesmente aceitando e normalizando tudo que é absurdo. Tentei tantoaté que,finalmente, consegui outro número e falei, pasmem, com um ser humano. Foi quando enfim mandaram os eletricistas para resolver a situação.
Chegaram os dois rapazes e já puseram logo as mãos à obra. Um deles, com máscara antichamas, para não queimar o rosto com possíveis descargas elétricas, luvas térmicas e todo o aparato, encostou uma escada no muro e subiu cuidadosamente até os fios que criavam uma teia complexa entre a nossa casa e o poste. Fiquei olhando para aquilo com admiração. Primeiro, porque me fascinam esses emaranhados de fios antiestéticos, mas interessantes, que parecem sempre à beira da explosão. Além disso, gosto de observar operários, encanadores, garis, todos aqueles que trabalham duro nos bastidores para manter de pé a nossa realidade aparentemente tão sólida. Resolvi puxar papo:
_Nossa, esse seu trabalho é perigoso, não é?
Os dois não hesitaram em concordar:
_Muito, é o segundo que mais mata, sabia? Há um acidente a cada quatro horas.
_Sério? Vocês já presenciaram algum?
_Sim! Um colega morreu na minha frente. Estava lá em cima, tomou um choque, caiu e se espatifou no chão. Depois, outro teve que passar por cima da poça de sangue para terminar o trabalho.
_Meu Deus! O que aconteceu?
_O cara achava que a corrente estava desligada e não estava. Foi depois de uma mudança de turno, a equipe anterior disse que tinha assegurado e na verdade não tinha.
_Alguém foi responsabilizado?
_Não, eles ficaram se culpando uns aos outros e acabou ficando por isso mesmo, como acidente de trabalho.
_Caramba! E vocês não têm medo?
_Eu tenho. – disse o que estava mexendo com os fios e parecia uma espécie de astronauta em cima da escada.
_Que nada! Eu não! – riu o outro, que esperava embaixo.
_E as famílias, não ficam preocupadas?
_Nem um pouco! Às vezes ligo para a minha mulher para lembrar a ela que ainda estou vivo. – mais risos.
_Quer dizer que você gosta do que faz?
_Eu gosto, você nunca sabe o que vai acontecer.
_Eu não, mas por enquanto preciso. – comentou o da escada. Foi a vez do primeiro olhar para ele com espanto:
_Sério? Você não gosta? Não sabia disso.
_Você pensa em mudar? – perguntei, curiosa, ao dissidente.
_Sim, todos os dias. Espero conseguir.
_Olha só, eu não fazia ideia… – o segundo tirou uma das luvas e coçou a cabeça por debaixo do capacete, enquanto o primeiro começava a descer a escada.
_Pois é, você nunca perguntou.
Um pequeno silêncio se fez, uma porta se abriu. Eles provavelmente teriam novos assuntos para falar quando fossem embora. Talvez ficassem mais próximos diante dos abismos que enfrentam a cada dia.
_Bem, de qualquer forma, muito obrigada por resolverem meu problema. Imagina minha mãezinha de 86 anos dormindo sem luz por dois seguidos…Fiquei preocupada.
_Nossa, e eles não mandaram ninguém antes?
_Não, reclamei muitas vezes e só mandaram hoje. Enfim, muito obrigada mesmo. Vocês são uns heróis!
Eles olharam para mim, com espanto.
_São mesmo, todos os dias arriscam a própria vida para o mundo dos outros continuar funcionando.
Eles sorriram meio sem graça, como se não estivessem acostumados a ser vistos. Foram ainda mais solícitos e religaram um cabo que outro eletricista havia desligado dentro de casa, o que normalmente não costumam fazer. Partiram sorridentes e me cumprimentaram como se já nos conhecêssemos há muito tempo. Ainda faltavam algumas horas para o fim do dia, o que para eles significava mais algumas batalhas entre a vida e a morte e mais um dia de trabalho na total invisibilidade.
#heróis #diaadia #cotidiano #crônicas #quartafeira #quandoasnuvensdançam #vida #viver #serhumano