Há alguns dias meu filho veio me mostrar um vídeo do YouTube, veio rindo, mamãe, mamãe, olha que vídeo surreal, de um canal de um gamer, e você sabe, né, eu adoro os YouTubers, os videogames, etc e tal, só que o vídeo não era sobre games, não, mamãe, era uma batata – chip, isso mesmo, uma batata – chip girando, sobre um fundo preto, ao som de uma música de discoteca dos anos 80, só isso, uma batata – chip, uma dessas batatinhas fritas de pacote, daquelas bem processadas e bem gordurosas, que fazem super mal, e todo mundo sabe que faz mal, e todo mundo vende, porque faz mal, e tem em todos os mercados e conveniências e fotos de publicidades, e as crianças amam, e os diabéticos amam, e os laboratórios, as farmácias, as indústrias farmacêuticas amam, uma batata chip, enfim, fininha e elegante, inocente e ingênua, uma pobre batatinha girando ao redor de si mesma, ao som da mesma música, por uma hora, uma postagem qualquer, feita dois anos atrás, com 46 milhões de visualizações e 2 milhões de likes. E então, mamãe, gostou? Eu, ainda calada, olhando para o movimento hipnótico do tubérculo processado, parecia que a batata estava tentando me dizer alguma coisa, queria talvez processar minha mente que não conseguia processar a batata, os números, os comentários, numerosos, fervorosos, entusiasmados, até mesmo um comentário da própria plataforma, pasmem, do YouTube, elogiando e querendo usar o vídeo “genial” em seu marketing. Finalmente, consegui colocar palavras em meu desvario: este vídeo me deixou deprimida, meu filho, eu disse, e Mahal deu uma sonora gargalhada, como assim, mamãe, por quê? Tentei resumir o que passava por minha cabeça, sem complicar muito, respondi rapidamente, porque é o fim do mundo, uma besteira enorme, um desperdício de tempo, porque me deixa triste que tanta gente curta algo assim, e é claro que ele não entendeu, mas, pelo menos, quem sabe parou e pensou um pouco? Eu não queria entrar em detalhes, ainda não, jogar uma sombra sobre esse tipo de alegria, descomprometida e desenraizada, alegria de batata, que a gente só conhece aos oito anos, mas que, pelo visto, 46 milhões de pessoas ainda têm, não acabei com a batata, quero dizer, com a alegria dele, mas levei o vídeo comigo, ou ele me levou consigo, roubou um pouquinho da minha alma, na verdade, era como se, por um minuto, que foi o máximo que consegui suportar da coisa, o poço da depressão houvesse sido destampado, a caixa de Pandora, aberta. Ali estava, claro e inconfundível, um testemunho do desnorteio da humanidade, um exame de sangue com excesso de glicose, uma cidade se derretendo, o Rio de Janeiro, minha cidade natal, a sensação térmica de 60 graus, no mundo inteiro as temperaturas subindo, a cada dia um pouco mais, ou então caindo, dramaticamente, as florestas queimando ou sendo incansavelmente desmatadas, tornados em Arraial d’Ajuda, tornados e furacões onde antes não aconteciam, enchentes e elevação dos mares, cidades debaixo d’água, países inteiros desaparecendo, oceanos saturados de lixo, 90% das espécies em perigo ou já extintas, um mundo em que o ar, a terra, os rios e os alimentos estão contaminados, os biomas poluídos e destruídos, grande parte da população passando fome e necessidade, e a sexta extinção em massa já começou. E no que as pessoas estão pensando? O que estão fazendo? E nós, o que nós estamos fazendo? Borboletinha tá na cozinha, fazendo chocolate com batatinha? Não, acho que não era bem assim, era… ah, isso mesmo, era o Elon Musk querendo levar gente para marte, uma ótima maneira de investir o dinheiro das indústrias de remédios, armas, alimentos, informação, as corporações, as maquinações, as indústrias das porras todas, o dinheiro dessa e de outras batatas, enfim, como se não houvesse nada de importante para fazer aqui, como se esse planeta também já fosse lixo, e talvez, talvez, alguém aqui ache que estou exagerando e até se pergunte se aquele vídeo poderia ser considerado arte, e, sinceramente, acho que sim, sinistra arte do apocalipse, símbolo de nossa era, gravado em alguma caixa preta, para que civilizações o descubram quando nossa espécie não mais existir, será um tutorial, ensinará de forma rápida e eficiente a epopeia humana, apontará para nosso nível de consciência, nosso grau de ignorância, como naquela historinha dos sapos, que vão sendo cozidos pouco a pouco sem perceber, contará o resumo de nosso mundo, a conclusão da nossa história. O triste fim da batatinha.