49- a vida secreta das palavras (Quando as Nuvens Dançam – Reflexões de Quarta-feira)
Por que não conseguimos falar quando mais precisamos, quando nos assaltam sentimentos que, por não suportar, não ousamos descrever? Em que momento perdemos a capacidade de nos expressar: na censura do pai, na falta de atenção da mãe, no abuso do parceiro, na orfandade do mundo, de alguém que realmente nos escute? O que nossa incapacidade nos mostra, o que não conseguimos enxergar? Quanto tempo dedicamos ao estudo dessas palavras, ditas e desditas, que nos chegam constante e incansavelmente? Ninguém possui as palavras. São seres míticos, místicos, vivos, imortais. Ora rastejam, ora voam rumo à imensidão. São contagiosas, hereditárias e se multiplicam sem parar. Basta ficar em silêncio que elas emergem, caudalosas, ruidosas, como um rio que corre sem cessar.
Ainda assim, mesmo sendo tantas, inúmeras, em centenas de idiomas, nos faltam ou nos chegam de maneira torta, impossível, irremediável, quando as queremos usar. Sensíveis, se ressentem, recuam ofendidas quando as queimamos ou soltamos à deriva. Fugimos delas, nos escondemos, as jogamos ao fogo, incitamos guerras, internas ou externas, dentro ou fora de casa, ou negamos o que nos querem dizer, ainda que, lá no fundo, as escutemos sem parar. Muitas vezes as rejeitamos, não queremos, sofremos e morremos aos poucos, intoxicados de palavras não pronunciadas, emudecidos de palavras engasgadas, ardendo com palavras inflamadas. E elas continuam, gritam ou sangram, implodem ou explodem, cada vez mais. Afinal, não se pode correr ou livrar do que não é nosso.
Nas nossas muitas mortes ao longo da vida, as palavras triunfam, se erguem da fogueira, nos atormentam e inundam, assombram cada instante, e nos contam, sem piedade, todas as histórias sufocadas, de quando aceitamos o inaceitável, dos amores não declarados, dos livros não escritos, poemas não declamados, o que não se quis dizer, mas se disse, o que se quis dizer, mas foi negado. As palavras não são nossas, pois nós é que a elas pertencemos. Com o tempo, elas se cravam nas feições, sulcam a pele, esculpem nosso olhar, o devolvem no espelho, exalam das escolhas do que dizemos e fazemos, das consequências que não falham, até quando não escolhemos, elas sussurram, especialmente quando calam. Como uma música, próxima ou distante, mas sempre presente, as palavras subterrâneas nos convidam a navegar.