Estou no ônibus, tudo está escuro, todos parecem dormir ainda que os assentos, mais reclinados no semi-leito, não sejam especialmente confortáveis. Ainda menos para mim, provavelmente, esmagada por uma artrose que supura aqui e ali no corpo, como pequenos vulcões que entram em erupção, alternadamente ou juntos, dependendo do dia, da posição e do clima. Ainda assim, viajar nas estradas noturnas tem sabor do passado e faz emergir delírios que eu poderia chamar de juvenis caso não fossem todas as idades cheias deles, dos pensamentos delirantes. Talvez antes delirar fosse menos censurado, mais óbvio e comum. Afinal, dos mais velhos se espera uma seriedade e uma funcionalidade que, no entanto, pouco condiz com a realidade interior da grande maioria. Somos todos malucos disfarçados e, com o devido estímulo, nos tornamos os bichos que sempre fomos.
A viagem me lembra daquela que escreve no meio da noite. Acordo de um cochilo dolorido e não tenho outra escolha senão escrever. No sonho, alguém que amo havia morrido e eu perguntava para meu marido, tem certeza que a vida continua mesmo depois da morte? Porque faz muita falta não poder mais abraçar a pessoa, digo a ele. Faz falta demais. Digo isso no sonho como se, de certa maneira, para mim, a morte se resumisse à impossibilidade de dar um abraço em alguém que amamos, afinal, quer coisa pior que isso? Acordo com saudades de todos que se foram e daqueles que estão por partir. Penso que o luto serve justamente para aprender a soltar o desejo do abraço, por mais que ele nunca nos deixe. Mas não tem jeito, precisa de tempo para conseguir não agarrar mais o próprio desgarramento. Desabraçamos o impossível para que não nos mate de pesar. Aceitamos o vazio entre os braços, ou talvez mais que aceitar, nos tornamos cada vez mais um pouco esse vazio, que pode estar cheio de tudo, da tristeza de tudo que não é mais, como também da alegria por tudo que foi e será. Requer vazio para que a vida aconteça.
Acima de tudo, a morte é a sombra dela mesma, que nos acompanha desde o dia em que nascemos, desde que deixamos o ventre e nos sentimos soltos do todo de que fazemos parte. Desde o início, somos o abraço do ventre que se desfaz, um abraço em dissolução, em busca de nós mesmos, das nossas tantas partes que vão se agregando e se perdendo ao longo do caminho. No Big Bang da nossa curtíssima existência, vivemos essa constante expansão, nos afastamos cada vez mais de nossa solidez. Passamos do abraço maternal ao abraço universal, nos expandimos rumo ao infinito, à Mãe Maior, de que são feitos todos os abraços. Não é possível sobreviver a tanta dor e a tanta beleza. Por isso, cada dia é tanto viver quanto morrer. Pelo menos, é o que me dizem as paisagens na janela, a estrada escura iluminada apenas pelos faróis, a noite que passa por mim enquanto eu passo por ela.