Sou da geração e da casta medonha para a qual era normal os prédios terem elevadores sociais e de serviço, e os empregados não podiam usar os sociais. Todos os apartamentos tinham também “quartos de empregada”, cubículos sem janelas e conforto onde as funcionárias dormiam após trabalharem o dia inteiro, da hora de acordar até a hora de dormir. Minha avó, como muitas amigas suas, se horrorizava diante da mera menção à possibilidade de um de seus filhos ter uma relação com uma pessoa negra. Apesar desse e de outros absurdos, quando menina eu acreditava que no Brasil não havia racismo, perpetuando as mentiras que me haviam sido contadas, acreditando e repetindo para mim mesma a história eurocêntrica que os livros escolares ensinavam.
Tive que crescer e viajar para enxergar o pesadelo. Voltei para o berço do descobrimento, ou melhor, da invasão, do país que chamo de minha casa. Foi aqui na Bahia que se deram os primeiros e terríveis traumas brasileiros que nos assombram até hoje. É daqui que vem grande parte da nossa arte e cultura, já que toda arte verdadeira é também processo de cura e superação. Hoje olho em volta e sei que ainda há um imenso trabalho a ser feito. Nossas cidades foram construídas sobre o sangue da escravidão. Até hoje a discrepância social é apavorante. Tenho vergonha de tudo isso. Vergonha dos eventos na escola particular de meu filho em que as crianças brancas são maioria. Vergonha de meu bairro e de todos os bairros “brancos”, dos políticos que representam minha cidade e meu país sem realmente representar a todos. Vergonha dos muros que construímos ao redor das casas e dos condomínios, que mantém do lado de fora as consequências de nossa apatia e inação, da loucura que aceitamos em todos os âmbitos e esferas da nossa existência.
É difícil viver com vergonha. Mas muito mais difícil é viver do lado de lá. Nas favelas e nas prisões, na violência e na falta de tudo: saúde, educação, alimentação, respeito, dignidade, oportunidade, reconhecimento, privilégio, história, memória, solidariedade, civilidade… Lembro-me de como foi pavoroso para meus colegas alemães estudarem o nazismo na escola. Éramos apenas adolescentes, mas passamos seis meses olhando fundo para os horrores cometidos pela geração dos nossos avós. Tudo aquilo era próximo demais, uma verdade insuportável. Éramos jovens como quaisquer outros, com sonhos juvenis e sem grandes culpas, mas já levávamos em nós o peso de uma humanidade massacrada e aviltada pela própria ignorância. Mesmo assim, falhamos em entender e ensinar que o nazismo, a ditadura, a escravidão, o racismo, as guerras, vêm todos do mesmo lugar de desigualdade, opressão e profunda desumanização. Não tem como mudar o mundo se não entendermos que o mundo começa em nós.