38 – Mais um Dia (Quando as Nuvens Dançam – Reflexões de Quarta-feira)

São situações e sentimentos, muita coisa por entender e digerir no decorrer dos últimos anos. Um dia desses, pensei em como minha avó falava, falava, falava. Eram tantas memórias, tanto disse-me-disse, coisas que aconteceram com ela ou em volta dela nos seus mais de oitenta anos de vida, enfim, histórias que não acabavam mais. Muitas delas interessantíssimas, hoje perdidas para sempre. Nenhum filho ou neto se deu o trabalho de guardar, gravar, transcrever tudo aquilo. Ela morreu e com ela tudo que nos contou. Por isso também, por mais que me falte energia, finalmente resolvi fazer um apanhado de momentos e pensamentos, para registrar, nem que seja uma ínfima parte do que tem sido a relação com minha mãe, juntar o máximo de tesselas do mosaico que é essa pessoa tão importante em minha vida. Sabendo que, por mais que eu escreva, trarei à luz apenas a pontinha de um imenso iceberg. Comecei há tempos, mas só agora realmente tomei a decisão de transformar esses escritos em um livro, sem saber exatamente como farei e quanto tempo precisarei para concluí-lo. Essa resolução chega hoje, impulsionada pela sequência de desafios que emerge durante a fase mais difícil da vida dela. Só de pensar isso, lágrimas me vêm aos olhos.

Mamãe está com broncopneumonia, internada no hospital. Primeiro, ficou uma semana lutando contra uma erupção de herpes zoster, que a deixou prostrada e gemendo de dor. Três dias após terminar o tratamento, começou a tossir e o quadro rapidamente evoluiu para mais uma peleja. Em pouco tempo, ela perdeu as poucas forças que ainda tinha, passou a ter dificuldade de levantar, andar pequenas distâncias, ir do quarto até a sala, com o andador, como ela sempre fazia, ir ao banheiro e se vestir sozinha. A médica não hesitou em recomendar uma internação, o que exigiu de mim uma sequência de malabarismos: telefonar para diferentes hospitais, informar parentes e amigos, arrumar as bolsas, organizar quem ficaria com meu filho, quem alimentaria os bichos, achar alguém para nos levar, convencer mamãe da urgência da situação, conseguir fazê-la chegar até o carro, amparada por três pessoas, e mesmo assim quase não dar conta, atender a seus constantes chamados por ajuda. Sabendo que há casos em que algumas horas podem fazer uma grande diferença. Organizar tudo sem esquecer do mais importante, que é trazer um pouco de conforto e segurança para ela sentir que não está só. Administrar minha própria dor em tudo isso, a dor de ver o sofrimento dela, a dor de não ser capaz de fazer mais do que faço e não saber se estou fazendo certo ou errado, a dor de ver meu filho chorando com medo de perder a avó, a dor  do tempo que tudo engole, a dor da dor de viver e morrer.  

Tento ficar atenta e beber da delicadeza dos momentos compartilhados, em que nossas mãos se entrelaçam e sinto seus dedos muito finos nos meus, o peso de sua fragilidade, o tremor de seus medos. Massageio suas pernas endurecidas pelas úlceras, escovo seus cabelos ralos, que ela insiste em ainda querer pintar, sinto o cheirinho conhecido da loção antirrugas que às vezes ela ainda pede para passar quando beijo sua testa. Conversamos sobre uma besteira qualquer, assistimos juntas alguma novela que faz seus olhos brilharem. Ao mesmo tempo, em meio a toda a loucura de ir para cá e para lá buscando soluções, obverso com tristeza o marasmo dos processos burocráticos, a precariedade do posto de atendimento, dos hospitais, público e privado, a pobreza material e mental de meu país, a falta de conexão entre médicos e especialistas, e deles com os pacientes, como se as pessoas fossem máquinas a serem consertadas e não organismos complexos, sensíveis e únicos. Por outro lado, recebo com imensa gratidão e fico profundamente comovida com o carinho de alguns enfermeiros e médicos, que certamente não se manifestaria da mesma forma em nenhum outro lugar do mundo, com a súbita onda de ajuda de amigos e conhecidos, alguns que eu não via há tempos, que de repente me ligam ou simplesmente aparecem, dispostos a fazer o que podem por nós. Por fim, em meio às tormentas, para não afundar e seguir navegando, vou escrevinhando algumas linhas, colocando em palavras e frases falhas sentimentos e sensações fugazes, para que tudo isso não escoe rápido demais pelo ralo aberto da vida que passa, dos momentos que morrem sem deixar vestígios a não ser suas marcas impiedosas no corpo e no coração.