30) Uma História Invernal (Quando as Nuvens Dançam – Reflexões de Quarta-Feira)
Era uma noite de alto inverno. Estávamos hospedados na casa de um casal de amigos, lá fora o vento uivava e a neve caía sem parar. O mundo estava silencioso, mergulhado em branco e cinza. Dentro das casas as pessoas sentavam ao redor da lareira ou perto do aquecedor, tomavam bebidas quentes ou alcoólicas para esquentar a alma. Estávamos conversando com nossos amigos quando um grito assustador veio do quarto onde meu filho estava dormindo. Desci correndo e, quando atravessei a porta, ele estava desnorteado, sentado em cima da cama, gritando e chorando muito. Ele tinha menos que dois anos na época, sempre acordava durante a noite, mas naquele dia estava especialmente transtornado. Atribuí seu estado ao fato de estarmos em uma casa desconhecida depois de muitas viagens e mudanças internas e externas. Só mais tarde ouvi falar do fenômeno que se chama “terror noturno” e pode acontecer com crianças pequenas em fases de grande estresse. Mas era um terror mesmo, emoldurado pelo clima sombrio e por correntes sutis de ar frio, que nos atravessavam constantemente, mesmo apesar do aquecimento central das casas. Meu filho deve ter demorado uma meio hora para se acalmar. Por fim, consegui fazê-lo mamar. Mesmo sem ter praticado a amamentação exclusiva e tendo que suplementar a alimentação dele, fui uma daquelas mães entusiastas da amamentação. Amamentar é pura magia e não há palavra melhor para descrever o que ocorre ali, algo que nenhuma outra alternativa poderá jamais substituir. Por isso, amamentei meu menino até ele completar quatro anos de idade. Quando era recém-nascido, eu já percebia como ele absorvia muito mais que meu leite quando mamava. Ele bebia o que eu sentia. Sentíamos um ao outro, na verdade. Era um se alimentando do outro, como uma continuação do circuito que havia iniciado na gravidez. Quando eu estava nervosa ou preocupada, ele demorava mais para adormecer, ficava inquieto, não parava de se mexer. Bastava eu começar uma prática de meditação para ele relaxar e se entregar ao sono. Naquela noite, na casa de nossos amigos em Chicago, lembro que estava dando de mamar e me sentia um pouco tensa, por causa do escândalo aterrador do pequeno, mas também porque invernos para mim sempre tiveram algo de ligeiramente sinistro. Nos dias mais gélidos, pessoas desabrigadas morrem, tudo que está fora fenece e só renasce na primavera. A morte fica literalmente mais próxima do que ela já é. Minhas mãos e meus pés ficavam frios o tempo todo e demoravam muito para se aquecer antes de dormir. Talvez por isso, transportada por intuições mais sutis do que eu era capaz de compreender, aconteceu algo inesperado. À medida que refletia e sentia meu bebê, bebendo de mim, suas mãozinhas geladas, as pontas de suas pequenas unhas, que eu tinha esquecido de cortar, pressionando e arranhando levemente a minha pele, foi como se, de repente, não fosse mais ele mamando ali. Ou melhor, era ele sim, mas não daquela forma que eu o conhecia. Era ele, só que bem mais velho, na verdade quase decrépito, um moribundo. Um homem antigo, com dedos finos e glaciais, unhas longas, unhas-garras de bicho, uma pele manchada e atravessada por veias azuladas. E ele murmurava, bem baixinho: mamãe… Era como se eu estivesse vendo, ou percebendo, meu filho muito mais tarde, ou talvez, quem sabe, em outra vida. Numa outra dimensão. Lá estava eu, mulher-mãe, navegando no desconhecido sem fim, dentro de mim, um vazio fértil, ainda muito mais profundo e vasto desde que me havia partido em dois. Eu havia literalmente dado à luz a vida e a morte, a um ser humano que nasceu, cresceria e morreria. E o mais louco era que eu estaria sempre com ele, mesmo quando não mais estivesse.