31) O Doce Não Fazer Nada (Quando as Nuvens Dançam – Reflexões de Quarta-Feira)
Em italiano virou até mesmo uma expressão: il dolce farniente. Soa como uma carícia e não deixa de ser. Passei muito tempo de minha vida cultivando o nada criativo, sem me deixar seduzir pela hiperatividade generalizada. Andei pelos mundos de dentro e de fora, sozinha e em silêncio, até mesmo quando estava com outras pessoas. Deslizei em espirais de sonhos, escalei ideias. Permiti aos ventos que me levassem sem ter que pedir permissão nem soltar correntes, com pouco ou até sem dinheiro. Farfalha livre e desimpedida, sussurrava uma canção que ninguém escutava além de mim mesma.
Só que a criatividade gerada naqueles anos foi tanta e tão intensa, que acabei caindo do outro lado do espelho, aquele que sempre rejeitei. Entrei em ebulição, transbordei de tanto borbulhar e comecei a trabalhar. Cada vez mais. E olha que eu gostei. Por isso talvez, porque estava acostumada ao oposto e morrendo de fome de transbordamento, foi como uma avalanche. Fui fazendo uma coisa que puxava outra e mais outra, uma ideia caía no solo fértil e logo brotava como coisa prática, uma miríade de projetos a serem regados e nutridos e cuidados. Assim foi surgindo um novo mundo de coisas e pessoas e afazeres, até mesmo um filho de carne e osso cresceu e saiu de mim, a obra mais ambiciosa de todas, sorvendo jarras cheias de meu tempo e minha força vital. Algumas vezes, cheguei a esquecer meu nome, virei o caroço da fruta cuspido no chão, tamanho era o cansaço. Só que aí voltava e brotar, maior e mais numerosa.
E parece que não acabou. A vida anda me dizendo que vem ainda bem mais coisa por aí. É muito amor, desses amores que não desistem, querem se reproduzir e gerar mais e mais amor. Mais e mais responsabilidades, enfim. Ou não. Afinal, há os momentos entre os momentos. Quando deito ao ar livre e a luz do sol incide e insiste em brincar com as folhas. Quando sei que não há lugar algum aonde ir, não há um trem prestes a partir nem uma encomenda que nunca vai chegar. Às vezes, sou vento, a soprar e semear, sem ficar, sem planejar. Hoje estou aqui, amanhã posso não estar. É isso viver, como essas folhas, beijadas pela luz que a água reflete, trêmulas de amor, ondulando em sensações que desconhecem. Que depois fenecem e caem, suavemente, gratas pelo beijo distante do mar, pelo instante no qual puderam amar. Também sou árvore, é claro, fincada na terra profunda, atravessada pelo pulsar subterrâneo da vida, sem precisar nada entender, já que me basta tudo abraçar. Esses pequenos oásis de não fazer nada são tão próximos a não ser nada que me levam a baixar os olhos e sorrir, no êxtase oculto de uma paixão que não compreendo, mas respiro.