27 –   Lampejos de Desatino  (Quando as Nuvens Dançam – Reflexões de Quarta-feira)

O silêncio chama. 

Acordo de manhã nas carícias, porque me foram concedidas neste momento, e a vida não é de todo dura, não, hoje não. Por isso, desperto na suavidade, como um presente persistente em meio ao caos, nos carinhos que insistem em voltar mesmo quando parecem tão distantes, no vai e volta das marés intermitentes do amor. Até no desencontro, ele ressurge entre os corpos, o reconhecimento, farol do casamento, filho da teimosia. 

Logo, a realidade brota, como o dia, com seus afazeres e desafios: acordar o filho, lembrar a ele de arrumar a mochila, organizar seu lanche, ficar alguns instantes suspensa na eternidade enquanto ele toca piano e canta com o pai, que levantou animado, acompanhá-lo ao portão e acenar quando ele entra no carro da vizinha, tão gentil, que o conduz e traz da escola todos os dias, levar o dedo indicador ao rosto, logo abaixo do olho, gesto espelhado por ele, que se vai sorrindo na janela aberta, os lábios pronunciando silenciosamente a declaração diária de amor, nosso pequeno ritual, uma forma de dizer “eu te amo”, olhando nos olhos, sempre olhando nos olhos, enquanto o carro se afasta lentamente.

Então, voltar para as tarefas inevitáveis. Tentar solucionar a falta repentina de água, não basta o que já tem para ser feito, sempre aparece mais algum problema por resolver, avisar os hóspedes e me assegurar que tenham um balde d’água cheio à porta, para isso mesmo, para quando defecarem, acordar a mãe que tem varado as noites, prisioneira da solidão e do celular, tomar café da manhã com ela, atender aos seus pedidos, ir eu mesma ao banheiro enquanto enumero pendências, sentar no trono escatológico da vida e aceitar a mediocridade incontornável, me limpar e levantar, usar o balde como descarga e seguir em frente, ticando um por um dos itens da lista interminável, com a água que ainda não voltou, pagar as muitas contas, e mais contas, marcar finalmente a reunião da associação, mandar mensagens para umas dez pessoas, dentre elas funcionários, com as tantas questões organizacionais a serem resolvidas antes da viagem a trabalho, o agente de viagens, que me avisa tardiamente que preciso de um seguro, enquanto o jardineiro tenta consertar a bomba de água, mas a questão é um pouco mais complexa do que parecia inicialmente, e no meio disso tudo trabalhar ainda mais, tudo que tem que ser trabalhado, inclusive esse desabafo, mais que necessário.

Entrementes, o silêncio chama, praia deserta no meio da distração, e a pessoa se descobre viva, nem que seja num átimo de beleza, num lampejo de desatino, em meio à dança e ao turbilhão, entre um passo e outro, é o gesto, o protesto suave dos momentos roubados, recuperando a atenção esfacelada, denunciando a loucura da normalidade, restaurando a normalidade na loucura, transbordando da falta de sentido, cadenciando os sentimentos, emergindo da confusão, na penúria e na abundância, do mundo terrível e magnífico, da torneira fechada e aberta, de onde jorra – a água, que agora finalmente voltou.