46- sobre doer e agradecer (Quando as Nuvens Dançam – Reflexões de Quarta-feira)

A dor é difícil, mas ela ajuda. Quem sente dor, tem que desapegar. Soltar, nem que seja só o desejo de não sentir dor naquele específico momento. Não se trata de se conformar. A dor ajuda, também, a lutar, por um espaço com menos dor ou um espaço além da dor. Ela mobiliza, traz de volta para o essencial, nos mostra o que é. E, se possível, nos ajuda no processo de soltar ainda mais, soltar o medo da dor, a tensão, a negação que acontece a cada vez que ela surge. Ela é muito clara, ela nos diz: se não soltar, de um jeito ou de outro, vai doer mais. Sim, a dor fala. Fala quando dói e fala quando cala. Na pressa de tomar o remédio, de silenciar o sintoma antes de pensar na causa. No silêncio anestesiado, ameaçador, de quem pode voltar a qualquer momento. Ela é o monstro debaixo da cama, que nos chama. 

A dor desperta. É algo que todos têm em comum. Não há quem, em menor ou maior grau, não esteja sentindo nem que seja um pouquinho de dor. Talvez a pessoa não tenha consciência do que está sentindo, mas a dor sabe de nós, ainda que não saibamos dela. Há quem a negue por anos e, de repente, ela transborda, doendo muito, doendo mais. Pois ela está sempre ali, como uma sombra que se alimenta de sombras e, quando bem alimentada, às vezes, se acende, pega fogo e queima. E aí a gente se lembra do que foi, do que não foi, do que poderia ter sido. E ela pergunta: quem é você? É aquele que se curva à minha frente, chora o leite derramado, reclama, vocifera, amaldiçoa? Aquele que foge assim que me vê, fingindo que eu não sou nada, que não existo? Ou então me olha de frente, como alguém que sabe que está diante de algo maior, disposto a escutar e despertar?

A dor ensina a agradecer por tudo que não dói, até que agradecer seja uma forma de ser e entender que também a dor tem seu lugar na gratidão. Ela está no início, no meio e no fim, na vida que nasce e cresce, nos desafios do percurso, na morte que nos espera. Quando o amor vem, quando o amor se vai. Ao percebermos, enfim, o pouco que sabemos. Ao abraçarmos a vida mesmo assim. Quando estamos plenamente vivos, quando amamos plenamente. A dor está ali, companheira de viagem, no morrer de cada momento. Não há heroísmo nem em procurar a dor nem em fugir dela. Mas quando ela chega, tudo fica muito quieto, tudo que não seja ela desaparece. Buraco negro, consome o que há ao seu redor, e explode em um novo universo. Não há caminho de que ela não faça parte. Por isso, a arte é aprender a caminhar apesar da dor e graças a ela.